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31/05/2013
Salitre: Suor, farinha, lama e resistência de quem vive na Lagoa dos Crioulos

Salitre/São Benedito - Falta água e sobra barro. Quando, além disso, faltava reconhecimento, os negros quilombolas da Lagoa dos Crioulos deram as caras ao direito. Mas ainda hoje falta o mínimo em um dos 26 territórios em processo legal de reconhecimento quilombola no Estado do Ceará.

Os remanescentes de negros fugidos da escravidão em Pernambuco e Piauí, que atravessaram a Chapada do Araripe, continuam fazendo no Ceará o mesmo que 150 anos atrás: Trabalhando para "brancos" e tendo alguma recompensa pelo esforço, que nem todos conseguem chamar de salário.

Não há trabalho escravo, mas crianças trabalhando. Muitas. Terezinha do Rosário tem 11 anos, mas começou a descascar mandioca com 3. Era brincadeira, hoje é obrigação. Não é o pai que força. "É a necessidade". Acha normal ter que trabalhar e acaba sendo normal mesmo, pois Maria Alves, de 11 anos, Edjane dos Santos e outros amiguinhos trabalham também. Os outros não foram vistos porque quando a reportagem chegou o proprietário da casa de farinha escondeu-os nos fundos.

É o dia inteiro para "ganha"´ R$ 2 por descascar 70kg de mandioca, o que cabe em um caçuá, para depois fazer a farinha que vai para Limoeiro do Norte, Aracati e Fortaleza.

As mulheres adultas descascam, cada uma, até meia tonelada de mandioca por dia. Ao final, as negras vão para casas brancas de farinha e com R$ 14 no bolso. E, assim, as casas de farinha fazem o sustento de quase todas as 93 famílias da Lagoa dos Crioulos, em Salitre.

"Antigamente, a situação era muito pior", afirma Carlos David, o "Missionário", jovem da paróquia que, pelos serviços prestados e ser homem "esclarecido", tornou-se líder da Associação Cultural dos Quilombolas remanescentes da Lagoa dos Crioulos. O "antigo" é um tempo de pouco mais de cinco anos, quando não existia posto de saúde, creche, escola e um Centro de Referência da Assistência Social (Cras).

Água e voto

A demora para a chegada do carro-pipa com água potável preocupa Maria Macionilha de Jesus, a "Maria do Céu", matriarca da comunidade. Não acha correto vender voto, mas não disse "não" quando um candidato se ofereceu, ano passado, a trazer uma "carrada" de água limpa. São tantos baldes de felicidade que "besta de quem recusar uma coisa dessa". A água chegava junto com o candidato.

A eleição passou, mas a seca não. Sem voto, não tem carro-pipa "fácil". Ano sem eleição é de valor menor para toda a Lagoa dos Crioulos, sertão caririense. Quando o boi-crioulo da lenda original margeava a lagoa, a água era bem limpinha. Hoje, nem os bois querem beber. Não é água barrenta, é barro aguado.

Numa época, várias famílias tiveram problemas renais devido à água suja, poluída, imprópria. As crianças foram todas para a rezadeira Expedita Tereza. Elas tinham "ventre caído", mau-olhado. "Tudo o que a pessoa sentir, eu rezo". Só não consegue remédio para solidão. Nem que o filho pare de beber todo dia. "Não tem sentido, com 71 anos, eu passar por isso". Ociosidade, alcoolismo e violência doméstica é relato comum dos moradores da Lagoa dos Crioulos.

Libertação

Cinco comunidades em três territórios abrangendo os municípios de Horizonte, Pacajus, Tamboril e Salitre foram as primeiras do Ceará reconhecidas legalmente como quilombolas. Quando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) voltou a ter antropólogo, os processos avançaram.

O Diário Oficial da União (DOU) do dia 15 de 2012, reconhecendo os quilombolas, chegou feito uma carta de alforria.

Amor, depois, ódio

"Você vai ouvir nossa história, mas do outro lado vão contar outra". Não foi só Francisca Pai-Zé. No município de São Benedito, outros moradores da comunidade Carnaúba contaram uma história com duas versões: a dos negros e a dos índios. Dessa forma a comunidade quilombola, no município de São Benedito, Serra da Ibiapaba, ao norte do Ceará, tenta destacar a diferença com a outra etnia vizinha. Litígios por terras e afirmação cultural de duas famílias que eram uma só, separada por desavenças de propriedades.

Refugiados ontem, excluídos ainda hoje, índios e negros quilombolas não têm só os processos de luta parecidos. Um dia uniram-se em defesa própria. E por amor também. Laços que geraram filhos e a indefinição étnica nas raízes da pátria dos excluídos. Mas hoje predomina a discórdia entre os negros da Carnaúba e os índios da Gameleira, comunidades vizinhas no Ceará.

Dizendo-se do "lado pobre" do território, os quilombolas enfrentam problemas somados à exclusão social e à falta de alternativas no ano de seca. O que ainda vinga é o plantio de batata-doce, mas só porque é feito em regime irrigado.

Francisca Maria da Silva, a "Francisca Pai-Zé", trabalhava na roça o dia todo, mas desde que "deu um verme no pé", senta numa almofada e coloca a máquina de costura no chão. Faz bonecas de pano e roupinhas de criança. Tem muitas netas, mas a costura é para vender. Termina, volta para sua cadeira de rodas e sai levada pela filha a resolver as demandas da comunidade em que é líder.

Educação

As 239 famílias só têm, além das casas, uma escola, que já funciona no modelo diferenciado quilombola. Mas, por enquanto, a maior diferença não é pedagógica, porém nutricional. A despeito do que se poderia ensinar da didática da história do negro no Brasil, as crianças e adolescentes recebem alimentação reforçada. "As outras políticas públicas para a comunidade devem vir com o tempo", afirma o professor Félix Júnior, diretor da escola quilombola e considerado irmão de luta pelos moradores da Carnaúba. Desde 2011, a associação dos quilombolas também firmou convênio com a Fundação Palmares.

Os quilombolas das Carnaúbas não possuem títulos de propriedade. Mas para Maria Pai-Zé, mãe de Francisca, o documento existe, porém foi carregado pelos "que se dizem índios". No meio deles, um tio dela. No fim das contas, os índios Tapuia-Kariri são a outra parte de uma mesma família em laços de amor e mestiçagem. Hoje, predomina o ódio e o repúdio.

"Essa história de quilombolas é uma invenção, eles são índios como nós, afirma Luana Gomes da Silva, da liderança indígena.

"A gente quer que os índios aceitem que a gente existe. Cada um na sua terra, cada um no seu espaço, pois Deus é um só", diz a quilombola Francisca Pai-Zé.

O Incra tem, desde 2003, o direito legal sobre o processo de reconhecimento de comunidades quilombolas no Brasil. O antropólogo é a primeira conexão da comunidade com o processo de autodeclaração, sobretudo onde a afirmação cultural é frágil. A superintendência do Incra no Ceará não tinha antropólogo até três anos atrás, resultando uma série de erros de operação e processos em estágio lento.

Foi assim com a comunidade de Bastiões, em Iracema, no Vale do Jaguaribe (CE). Depois que técnicos do Incra estiveram na comunidade, predominante de negros, dizendo que ali havia direito quilombola, instalou-se uma confusão: não-negros contra negros e negros contra negros. O Ministério Público Federal (MPF) pediu esclarecimentos sobre o porquê e parou o processo de reconhecimento da comunidade quilombola de Bastiões, no município cearense de Iracema.

O medo de ter que sair do lugar fez os não-negros ameaçarem só sair mortos. Receosos com o processo de desestabilização, os negros que já tinham se autodeclarado quilombolas pediram a suspensão do reconhecimento e delimitação territorial.

Fonte: Diário Nordeste
Melquíades Júnior
Repórter

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